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Herberto Helder

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aparas gregas de mármore em redor da cabeça,
torso, ilhargas, membros e nos membros,
rótulas, unhas,
irrompem da água escarpada,
o vídeo funciona,
água para trás, crua, das minas,
tu próprio crias pêso e leveza,
luz própria,
levanta-os com o corpo,
cria com o corpo a tua própria gramática,
o mundo nasce do vídeo, o caos do mundo,
beltà, jubilação, abalo,
que Deus funciona na sua glória electrónica

A Faca não Corta o Fogo in Poemas Completos, Porto, Porto Editora, p. 565.

Herberto Helder, poeta.
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Nasce na ilha da Madeira em 1930.
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Em 1946, vai para Lisboa onde frequenta o Liceu Camões.
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De 1948 a 1952, frequenta a Universidade de Coimbra, primeiro em Direito, depois em Filologia Românica, não terminando nenhum dos cursos.
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Em 1958, publica o primeiro livro, O Amor em Visita.
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Entre 1958 e 1960, viaja e vive na Europa, nomeadamente em França, na Bélgica, na Holanda e na Dinamarca.
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Em 1961, publica A Colher na Boca e Poemacto.
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Em 1963, publica Os Passos em Volta, na Portugália, reeditado logo no ano seguinte (é o livro com mais edições da obra de Helder).
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Em 1964, co-organiza com António Aragão o «1º Caderno Antológico» da Poesia Experimental, publicando «Fragmento de a Máquina de Emaranhar Paisagens» (que se tornará A Máquina de Emaranhar Paisagens, hoje integrada em Poemas Completos) e «[Era uma vez um pintor que tinha um aquário...]» (que se intitulará «Teoria das Cores», hoje integrado em Os Passos em Volta). Em 1966, co-organiza com Aragão e E. M. de Melo e Castro o «2º Caderno Antológico» da Poesia Experimental.
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Entre 1967 e 1968, seguem-se algumas publicações importantes: primeiro, Húmus: Poema-Montagem, inspirado no livro homónimo de Raul Brandão; Retrato em Movimento, livro que não vai voltar a ser publicado enquanto tal, não obstante algumas das suas partes serem retomadas noutros livros; Ofício Cantante: 1953-1963 é a primeira antologia publicada por Helder; Apresentação do Rosto é outro livro que Helder nunca republicará, mas alguns dos seus textos integrarão mais tarde Photomaton & Vox; e, por fim, O Bebedor Nocturno, cujo primeiro subtítulo é «Versões de Herberto Helder», e o segundo é «Poemas Mudados para Português por Herberto Helder». Este último livro implica um gesto de tradução inédito, não só por incluir poemas de várias épocas, hemisférios e civilizações, mas também, e sobretudo, por Helder integrar logo em 1973 este livro na reunião da sua própria poesia, isto é, na Poesia Toda.
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Em 1969, é apresentada a curta-metragem As Deambulações do Mensageiro Alado, de Edgar Gonçalves Preto, na qual Helder participa como actor (a interpretar-se a si mesmo, poderíamos dizer), numa aparição muda com uma dimensão claramente auto-irónica, pois no ecrã aparecem as inscrições: «A Colher na Boca» (enquanto põe uma colher na boca), «Os Passos em Volta» (enquanto anda à volta do Anjo), «Apresentação do Rosto» (Helder praticamente em grande plano a olhar o Anjo).
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Entre 1971 e 1972, vive e trabalha em Angola. Colabora com o jornal Notícia – Semanário Ilustrado. Esses textos foram coligidos no volume Em Minúsculas, publicado pela Porto Editora em 2018.
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No início da década de 1970, aparecem duas importantes publicações: logo em 1971, publica Vocação Animal, outro dos livros que não voltou a editar enquanto tal; em 1973, publica uma nova antologia da obra em dois volumes, intitulada Poesia Toda, que inclui os inéditos, incontornáveis da obra helderiana, Antropofagias e Os Brancos Arquipélagos. No final da década, Helder dá ao prelo outros dois livros fundamentais: Cobra, em 1977, O Corpo o Luxo a Obra, em 1978.
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Ainda em 1979, publica Photomaton & Vox, livro que nasce do desejo de publicar uma «prosa toda», mas que reúne poemas e textos muito diferentes entre si, fazendo dele um livro verdadeiramente híbrido, que passa por diversos géneros sem se cingir propriamente a um que possamos definir ou apontar como preponderante.
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Em 1981, Helder publica no Porto, na Oiro do Dia, a plaquete A Plenos Pulmões, com um desenho de Armando Alves. No mesmo ano, sai mais uma edição aumentada de Poesia Toda, que verá ainda mais duas edições, em 1990, com o inédito Os Selos, e em 1996, com o inédito Os Selos, Outros, Últimos.
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Em 1985, o gesto antológico é de outra ordem. Helder organiza a antologia de poesia portuguesa Edoi Lelia Doura: Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa. No ano seguinte, publica outra antologia de «traduções», As Magias, que, como O Bebedor Nocturno, é primeiro subintitulada «Versões» e depois, em 2010, «Poemas Mudados para Português».
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Os livros de poesia inéditos começam a ser publicados mais espaçadamente: em 1980, Flash, em 1982, A Cabeça entre as Mãos, em 1988, Última Ciência, em 1994, Do Mundo.
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Em 1994, é-lhe atribuído o Prémio Pessoa, que recusa.
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Em 1997, Helder publica três livros de «Poemas Mudados para Português» na Assírio & Alvim (que do fim da década de 1970 até 2013 é a editora em que publica a maioria dos seus livros): Ouolof, Poemas Ameríndios, Doze Nós numa Corda.
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No início dos anos 2000, vemos dois gestos antológicos maiores dentro da sua obra poética: uma antologia subintitulada «Súmula», em 2001, Ou o Poema Contínuo: Súmula (inclui o poema inédito «Redivivo»), escolha de poemas separados por um asterisco de vários livros, e, em 2004, Ou o Poema Contínuo, que retoma a «forma» da Poesia Toda, isto é, a publicação dos livros integrais.
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Em 2008, Helder publica A Faca Não Corta o Fogo: Súmula & Inédita, livro maior, cuja primeira parte é uma antologia (retoma o gesto antológico da edição de 2001 de Ou o Poema Contínuo) e a segunda um livro inédito.
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Em 2009, Helder retoma o título que tinha dado à sua primeira antologia «completa»: Ofício Cantante: Poesia Completa, integrando já (e acrescentando-a) A Faca Não Corta o Fogo.
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Em 2013, publica Servidões.
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Em 2014, passa a ser editado pela Porto Editora, sendo publicado o livro A Morte sem Mestre, que é acompanhado por um CD em que Helder lê alguns dos poemas que ali se publicam. A este livro, em 2015, segue-se uma nova antologia «toda», a última, intitulada Poemas Completos.
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Morre em Cascais em 2015.
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Postumamente, são publicados dois livros de poesia: Poemas Canhotos, ainda em 2015, e Letra Aberta, em 2016.
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Helder reescreveu incessantemente a sua obra, raramente dava entrevistas e não cedia fotografias (contam-se poucas excepções).
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As revistas Relâmpago e Colóquio/Letras publicam alguma da sua correspondência, respectivamente com Gastão Cruz (Relâmpago n.º 36-37, 2015) e com António Ramos Rosa (Colóquio/Letras n.º 196, 2017).

estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela,
e sem que eu nada diga,
sente a trémula, tocada coluna de ar
a sorvo e sopro, ó
táctil, ininterrupta,
e a tua mão sinta contra mim
quanto aumenta o mundo

A Faca não Corta o Fogo in Poemas Completos, Porto, Porto Editora, p. 538.

HERBERTO HELDER OU A OBRA, UM POEMA EM POEMAS

(a carta da paixão)

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. [...]

Herberto Helder, Photomaton & Vox [1979], 5ª edição, Lisboa, Assirio & Alvim, 2013, p. 43.

É impossível falar sobre a obra de Herberto Helder sem imediatamente evocar a ideia mesma de «obra» trabalhada pelo autor. Ideia essa eminentemente ligada à forma como Helder foi publicando os seus livros ao longo do tempo. A obra de Helder é uma complexa trama, permanentemente reescrita e muitas vezes redistribuída, constituída por livros de poesia, alguns de prosa, de traduções poéticas a que o autor chama primeiro «versões» e depois «poemas mudados para português», de gestos antológicos significativos e significantes dentro da sua própria obra.

Helder começa a publicar em 1958 com o poema O Amor em Visita. Seguem-se, pouco depois, em 1961, A Colher na Boca e Poemacto. Logo em 1963, Helder publica um livro fundamental, Os Passos em Volta, livro em prosa, que podemos considerar de contos (a matriz do poema em prosa baudelairiano não lhe sendo alheia), e que acompanha toda a obra de Helder: as edições sucedem-se – doze edições de 1963 a 2015 – sempre reescritas, por vezes aumentadas.

Durante a década de 1960, Helder interessa-se pelo movimento da Poesia Experimental, integrando-o durante um curto período: é editor do 1º e do 2º cadernos antológicos da Poesia Experimental, primeiro só com António Aragão, depois com este e com E. M. de Melo e Castro. No primeiro caderno, de 1964, publica dois textos fundamentais da sua obra: «[Era uma vez um pintor que tinha um aquário...]», como preâmbulo, e «Fragmento de a Máquina de Emaranhar Paisagens». O primeiro texto, que hoje conhecemos como «Teoria das Cores», de Os Passos em Volta, é um texto exemplar das circulações de textos na obra de Helder: se a sua primeira publicação, sem título, é na Poesia Experimental, de seguida, em 1971, integra Vocação Animal, depois, é integrado em Retrato em Movimento na Poesia Toda, em 1981 (enquanto «II» de «As Maneiras»), e, por fim, passa a ser um dos textos, sob o título «Teoria das Cores», de Os Passos em Volta. Nesse mesmo contexto da Poesia Experimental, publica «Comunicação Académica» no suplemento do Jornal do Fundão. A sua passagem por este movimento é breve, mas notemos dois pontos interessantes: por um lado, Helder nunca abandona um gesto experimental, uma experimentação da poesia, das formas poéticas e da linguagem que transcende qualquer escola; por outro, os textos que publica nesse contexto são sempre mantidos na obra (o que, como sabemos, não é o caso de tudo o que Helder publicou). Dois deles ganham mesmo autonomia: A Máquina de Emaranhar Paisagens e Comunicação Académica são integrados na «poesia reunida» (em Poesia Toda, de 1973, mantendo-se até Poema Completos, em 2014) com o mesmo estatuto de um livro que tivesse sido publicado independentemente. E podemos assim dizer que mesmo a ideia de «livro», na obra de Helder, não é uma evidência, mas uma questão a ser sempre pensada.

Entre 1967 e 1968, Helder publica activamente. Primeiro, publica Húmus: Poema-Montagem na Guimarães. Depois, dez anos após o lançamento do seu primeiro livro (e assinalando outros dez anos, os de escrita, no subtítulo), Helder publica a primeira reunião da sua obra poética: Ofício Cantante: 1953-1963. Em 1967, publica Retrato em Movimento e, em 1968, Apresentação do Rosto, dois livros conhecidos por terem sido como que excluídos da obra. Trata-se de duas obras em que a prosa parece predominante, mas nas quais a génese poética (o poema, o poético) se tornam evidentes, fazendo por isso inteiramente parte da obra poética (e como já foi defendido, podemos, num certo sentido, considerar toda a obra de Helder como obra poética). Se Retrato em Movimento vai ser integrado na Poesia Toda (1973 e 1981), alguns textos de Apresentação do Rosto são integrados em Photomaton & Vox (1979). O estatuto de «livro excluído» é, deste modo, também ele, conflitual. Com um estatuto muito particular, é publicado, também em 1968, O Bebedor Nocturno, com um subtítulo ligado ao do «tradutor». Lemos: «Versões de Herberto Helder», mais tarde leremos «Poemas Mudados para Português por Herberto Helder». Este livro de «traduções» incorpora, então, versões de poemas rituais e religiosos de épocas, geografias e civilizações muito diferentes. No entanto, o gesto mais radical de Helder é o de, por sua vez, incorporar estes poemas na sua «própria» poesia, porque O Bebedor Nocturno é integrado na Poesia Toda, fazendo assim com que tudo devenha contemporâneo, do mais antigo poema (literalmente) ao seu mais recente.

É também em 1968 que tem uma experiência cinematográfica, fazendo o que se chamaria uma «participação especial», ou mesmo um género de «cameo», na curta-metragem As Deambulações do Mensageiro Alado, de Edgar Gonçalves Preto. Se esta é uma experiência única, episódica, o cinema – que já aparecia em Húmus – será muito importante na obra poética de Helder durante a década de 1970, não só ao nível do vocabulário utilizado, mas sobretudo por pensar verdadeiramente a imagem poética em relação com a imagem cinematográfica, o poema enquanto montagem, e por criar uma poética em que se pretende dar a ver como (n)um filme, donde a célebre formulação de «(memória, montagem)»: «Qualquer poema é um filme, e o único elemento que importa é o tempo» (Photomaton & Vox).

Na década de 1970, Helder publica, então, pela primeira vez, a já nomeada Poesia Toda em dois volumes. Para além da inclusão de O Bebedor Nocturno, é de assinalar também a primeira publicação em livro (alguns poemas tinham sido publicados na revista Caliban e no volume Novembro. Textos de Poesia) de Antropofagias e de Os Brancos Arquipélagos. Dois «livros» que nunca tiveram publicação enquanto «livro», mas que não só são identificados enquanto tal, mas também constituem dois conjuntos de poemas temática e formalmente coerentes enquanto «livro». Estas duas obras parecem, assim, não exigir serem publicadas autonomamente, prescindindo do funcionamento individual enquanto «livro» – mesmo que o sejam – para, poder-se-ia dizer, tomarem lugar sobretudo enquanto agentes promotores de uma leitura dialogante com e na obra.

Outro «caso» particularmente interessante – e sobretudo muito importante – na obra de Helder é o livro Cobra, publicado em 1977 na &etc. A tiragem de Cobra foi de 1200 exemplares, sendo que 200 foram oferecidos por Helder com emendas e alternativas feitas a caneta, criando assim o livro impossível: reescrito manual e diferentemente a cada exemplar. A este propósito Helder escreveu em carta a Eduardo Prado Coelho: «As versões têm variado de destinatário para destinatário, não atendendo a qualquer conjunto de peculiaridades dos destinatários, mas porque o livro, em si mesmo, digamos, flutua. É um livro em suspensão. Talvez só essa suspensão seja citável. Não é excitante que um livro não se cristalize, não seja "definitivo"? Mas parece que esta seu quê "perversa" evasão à gravidade tende a anular-se, pela imposição de novos poemas» (revista Abril, n.º 1, 1978, p. 46). E essa «evasão à gravidade» vai ainda tomar outra forma, porque Cobra é um livro que se vai disseminar na obra. Na primeira edição de Cobra, este é constituído por cinco secções: «Memória, Montagem», «Exemplo», «Cobra», «Cólofon» e «E outros Exemplos». Das cinco partes da primeira edição: «Memória, Montagem» integra Photomaton & Vox, o poema «Exemplo» corresponde ao poema «1» de Exemplos, o poema «Cólofon» ganha independência e torna-se Etc. (na edição de 1990 de Poesia Toda) e a última secção do livro, «E Outros exemplos», torna-se Exemplos, da qual o poema «5» é suprimido e os restantes quatro primeiros mudam de numeração (o «1» passa a «2» e assim sucessivamente), mantendo-se um conjunto de 5 poemas. Assim, se Cobra é ainda retomado na Poesia Toda, em 1981 (já sem «Memória, Montagem»), a partir da edição de 1990 da mesma obra, Cobra transforma-se, então, em três «livros»: Etc., Cobra e Exemplos; e a partir de Ofício Cantante, em 2009, desaparece Cobra, isto é, a sequência homónima do livro, os treze poemas intitulados «Cobra».

Em 1979, uma outra peça fundamental da trama que é a obra de Herberto Helder é publicada pela Assírio & Alvim: Photomaton & Vox. Este é um livro profundamente híbrido. Nele encontramos poemas, maioritariamente textos em prosa – o projeto inicial de Helder seria o de um volume de «prosa completa» –, alguns mais próximos do conto, outros mais próximos do ensaio, alguns mesmo próximos da anedota (no sentido de «pequena história»), sendo que o poético atravessa todos. É um livro também de textos «marginais». Nele são reunidos muitos dos textos de Helder que estavam em posição de prefácio ou posfácio a outros livros – como os títulos podem indicar: «(o bebedor nocturno)», «(o corpo o luxo a obra)». O livro integra também textos provenientes de Apresentação do Rosto, sendo que o último texto que acolhe, «(desalmadamente)», na edição de 2013, é sobre Almada Negreiros e tinha sido publicado no n.º 89 da revista A Phala, em 2001). Em Photomaton & vox, mas também em Antropofagias e em Cobra, tal como na plaquete A Plenos Pulmões, com (e em parte sobre) um desenho de Armando Alves, emerge um fazer poético aliado a uma potência crítica sobre a própria obra, sobre a escrita, as imagens, a criação. Nestas obras, torna-se sensível um pensamento permanentemente interartístico, no qual a escrita e, particularmente, o poema é questionado a partir das, e contaminado pelas, outras artes.

Nos anos de 1980, para além de uma nova edição, revista e aumentada, de Poesia Completa, logo em 1981, e da publicação de A Cabeça entre as Mãos em 1982, Helder publica, em 1985, a antologia Edoi Lelia Doura: Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa criando assim uma espécie de família na poesia portuguesa. Na continuação desse gesto, publica outras das suas «versões», agora introduzindo autores contemporâneos e alargando então essa «família poética» por afinidades electivas: em 1987, publica As Magias, em 1997, mais três livros que, desta vez, subintitula «Poemas Mudados para Português»: Ouolof, Poemas Ameríndios e Doze Nós numa Corda.

Os livros de poesia inéditos vão-se fazendo mais raros: em 1994, publica Do Mundo, e só em 2008 publicará A Faca não Corta o Fogo. No entanto, não deixa de publicar: para além de textos dispersos (pensemos em «Cinemas», na Relâmpago n.º 3, em 1998, e em «[Entendi que o quirólogo empregava...]» e «O Nome Coroado», na Telhados de Vidro n.ºs 4 e 6, 2005 e 2006), os gestos antológicos no interior da obra tornam-se cada vez mais importantes. A operação que leva a cabo em Ou o Poema Contínuo, de 2001 (que tem um só poema inédito: «Redivivo»), e em A Faca não Corta o Fogo, de 2008 (livro em que a primeira parte é uma «súmula» poética, isto é, uma «antologia da antologia» da obra helderiana, e a segunda parte é um livro inédito), subintitulados «Súmula» e «Súmula & Inédita» respetivamente, constitui um gesto antológico no interior da obra, um mínimo (ou máximo) poético, que, nos dois casos é seguido de uma reedição (reescrita) da obra poética completa: Ou o Poema Contínuo, em 2004, e Ofício Cantante, subintitulado «Poesia Completa», em 2009. Estas duas formas antológicas incorporam tanto um gesto micro, uma espécie de desejo da leitura do todo a partir da parte – a súmula –, quanto um gesto macro, a leitura do todo enquanto todo, extensão, variação. E o gesto é indecidível.

A Faca não Corta o Fogo e, depois, Servidões, em 2013, retomam a fulgurância da poesia helderiana, recuperando mesmo um vocabulário mais ligado ao quotidiano, ao banal, e uma certa violência. Os últimos livros, A Morte sem Mestre, em 2014, e o póstumo Poemas Canhotos, em 2015, bem como Letra Aberta, em 2016, são verdadeiramente livros do fim, de um fim, que é nova abertura, novo começo, como sempre, na poesia de Herberto Helder.

A paixão é a moral da poesia: arrisquem a cabeça se querem entender; arrisquem o corpo, a sua medida, se pretendem descobrir o centro do corpo; e sim, arrisquem sobretudo o nome pessoal, para ouvirem o nome de baptismo como o coroado nome da terra.

«Herberto Helder: entrevista» [1987], in Inimigo Rumor, n.º 11, 2001, p. 193.

E lemos:

Texto 1

Todo o discurso é apenas o símbolo de uma inflexão
da voz
a insinuação de um gesto uma temperatura
à sua extraordinária desordem preside um pensamento
melhor diria «um esforço» não coordenador (de algum modo)
mas de «moldagem» perguntavam «estão a criar moldes?»
não senhores para isso teria de preexistir um «modelo»
uma ideia organizada um cânone
queremos sugerir coisas como «imagem de respiração»
«imagem de digestão»
«imagem de dilatação»
«imagem de movimentação»
«com as palavras?» perguntavam eles e devo dizer quer era
uma pergunta perigosa um alarme colocando para sempre
algo como o confessado amor das palavras
no centro
não tentamos criar abóboras com a palavra «abóboras»
não é um sentido propiciatório da linguagem
introduzimos furtivamente planos que ocasionais
ocupações («des-sintonizar» aberto o caminho
para antigas explicações «discursos de discursos de discursos» etc.)
fixemos essa ideia de «planos»
podemos admiti-los como «uma espécie de casa»
ou «uma espécie de campos»
e então evidente para serem habitados percorridos gastos
será que se pretende ainda identificar «linguagem» e «vida»?
uma vez se designou mão para que a mão fosse
uma vez o discurso sugeriu mão para que a mão fosse
uma vez o discurso foi a mão
partia-se sempre de um entusiasmo arbitrário
era esse o «espírito» o «destino» da linguagem
agora estamos a ver as palavras como possibilidades
de respiração digestão dilatação movimentação
experimentamos a pequena possibilidade de uma inflexão quente
«elas estão andando por si próprias!» exclama alguém
estão a falar a andar umas com as outras
a falar umas com as outras
estão lançadas por aí fora a piscar o olho a ter inteligência
para todos os lados
sugerindo obliquamente que se reportam
a um novo universo ao qual é possível assistir
«ver»
como se vê o que comporta uma certa inflexão
de voz
é uma espécie de cinema das palavras
ou uma forma de vida assustadoramente juvenil
se calhar vão destruir-nos sob o título
«os autómatos invadem» mas invadem o quê?

Antropofagias in Poemas Completos, Porto, Porto Editora, pp. 273-4.

Obra
(livros, alguns dispersos, correspondências e outros poemas)

1958O Amor em Visita (Lisboa, Contraponto)
1961A Colher na Boca (Lisboa, Edições Ática)
1961Poemacto (Lisboa, Contraponto; 2ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1963)
1961 – «Ofício de Poeta» (revista Êxodo, pp. 32-24)
1962Lugar (Lisboa, Guimarães Editores)
1963Os Passos em Volta (Lisboa, Portugália; 2ª ed., 1964; 3ª ed., Lisboa, Editorial Estampa, 1970; 4ª à 11ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim: 1980, 1985, 1994, 1997, 2001, 2006, 2009, 2013; 12ª ed., Porto, Porto Editora, 2015)
1963 – «Relance sobre a Poesia de Edmundo de Bettencourt» (prefácio a Poemas de Edmundo de Bettencourt, Lisboa, Portugália, pp. XI-XXXII)
1964Electronicolírica (Lisboa, Guimarães Editores) [torna-se A Máquina Lírica]
1964 – «[Era uma vez um pintor que tinha um aquário...]», Poesia Experimental: 1º Caderno Antológico [torna-se «Teoria das Cores», Os Passos em Volta]
1964 – «Fragmento de a Máquina de Emaranhar Paisagens», Poesia Experimental: 1º Caderno Antológico [torna-se A Máquina de Emaranhar Paisagens]
1965 – «Comunicação Académica», Jornal do Fundão, suplemento, 24 Janeiro 1965 [torna-se Comunicação Académica]
1967Húmus: Poema-Montagem (Lisboa, Guimarães Editores)
1967Retrato em Movimento (Lisboa, Editora Ulisseia)
1967Ofício Cantante: 1953-1963 (Lisboa, Portugália)
1968 Apresentação do Rosto (Lisboa, Editora Ulisseia)
1968O Bebedor Nocturno (Lisboa, Portugália)
1971Vocação Animal (Lisboa, Dom Quixote)
1971 – «Movimentação Errática» e «Todo o discurso é apenas o símbolo da uma inflexão» (revista Caliban, n.º 2, pp. 40-43)
1972 – «Movimentação Errática» [«Texto 1», «Texto 2», «Texto 3», «Texto 4», « Texto 5»] (in Casimiro de Brito e Gatão Cruz (ed.), Novembro: Textos de Poesia, Lisboa, ed. dos organizadores, pp. 33-47)
1973 Poesia Toda 1 (Lisboa, Plátano Editora) [com duas obras inéditas: Os Brancos Arquipélagos e Antropofagias]
1973Poesia Toda 2 (Lisboa, Plátano Editora)
1977Cobra (Lisboa, & etc)
1978O Corpo o Luxo a Obra (Lisboa, & etc)
1978 – «A Poesia Vitaliza a Vida» (carta de Herberto Helder a Eduardo Prado Coelho, Abril, n.º 1, p. 46)
1979Photomaton & Vox (Lisboa, Assírio & Alvim) [2ª à 5ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim: 1987, 1995, 2006, 2013; 6ª edição, Porto, Porto Editora, 2015]
1980Flash (1980, ed. do autor)
1980 – «Cena Vocal com Fundo Visual de Cruzeiro Seixas» (Diário de Notícias, 19 de Junho de 1980, p. 17)
1981Poesia Toda: 1953-1980 (Lisboa, Assírio & Alvim)
1981A Plenos Pulmões, com um desenho de Armando Alves (Porto, Oiro do Dia)
1982 A Cabeça entre as Mãos (Lisboa, Assírio & Alvim)
1982 – «Nota Inútil», prefácio a Uma Faca nos Dentes, de António José Forte (Lisboa, & etc)
1984Kodak, com serigrafias de João Vieira (Lisboa, Galeria Altamira)
1985Edoi Lelia Doura. Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa (Lisboa, Assírio & Alvim)
1987As Magias (Lisboa, Hiena; 1988 e 2010, Lisboa, Assírio & Alvim)
1987 – «Herberto Helder: Entrevista» (in revista Inimigo Rumor, n.º 11, 2001, pp. 190-197; «Auto-Entrevista», revista Relâmpago, n.º 36-37, pp. 126-135)
1988Última Ciência (Lisboa, Assírio & Alvim)
1990Poesia Toda (Lisboa, Assírio & Alvim) [com uma obra inédita: Os Selos]
1994Do Mundo (Lisboa, Assírio & Alvim)
1996Poesia Toda (Lisboa, Assírio & Alvim) [com uma obra inédita: Os Selos, Outros, Últimos]
1997Ouolof: Poemas Mudados para Português (Lisboa, Assírio & Alvim)
1997Poemas Ameríndios: Poemas Mudados para Português (Lisboa, Assírio & Alvim)
1997Doze Nós numa Corda: Poemas Mudados para Português (Lisboa, Assírio & Alvim)
1998 – «Cinemas» (revista Relâmpago, n.º 3, pp. 7-8)
1998Fonte (Lisboa, Assírio & Alvim)
2001 Ou o Poema Contínuo: Súmula (Lisboa, Assírio & Alvim) [com o poema inédito: «Redivivo»]
2001 – «Paradiso, um Pouco» (revista Relâmpago, n.º 9, pp. 97-98)
2004Ou o Poema Contínuo (Lisboa, Assírio & Alvim)
2005 – «[Entendi que o quirólogo empregava...]» (revista Telhados de Vidro, n.º 4, pp. 111-116)
2006 – «O Nome Coroado» (revista Telhados de Vidro, n.º 6, pp. 155-167)
2008A Faca Não Corta o Fogo: Súmula & Inédita (Lisboa, Assírio & Alvim)
2009 Ofício Cantante: Poesia Completa (Lisboa, Assírio & Alvim)
2013Servidões (Lisboa, Assírio & Alvim)
2014A Morte sem Mestre (Porto, Porto Editora)
2014Poemas Completos (Porto, Porto Editora)
2015Poemas Canhotos (Porto, Porto Editora)
2015 – «Vinte e Cinco Cartas» [dirigidas a Gastão Cruz] (revista Relâmpago, n.º 36-37, pp. 137-195)
2016 Letra Aberta [Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima] (Porto, Porto Editora)
2017 – «Correspondência Inédita de Herberto Helder/ António Ramos Rosa» (revista Colóquio/Letras, n.º 196, pp. 43-81)
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