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Embarquemos em tempo de silêncio

23 Abr 2020
Subitamente ficara sozinho em casa de onde não se podia ausentar.

A casa é como que uma trincheira neste combate à pandemia e a porta transforma-se numa fronteira quase intransponível. As horas vão passando. Não é o poderoso silêncio que nos lança na solidão, mas esta confusão difusa. Num tempo sem pingo de reflexão por falta de tempo, criamos o medo de estarmos sós perante o silêncio. O receio de sermos lançados no desconforto de cavernosos caminhos da memória, como largados definitivamente no meio de um desassossego, sem freio na carroça destrambelhada da memória. E, quando assim é, quando não conseguimos lidar com a tranquilidade do momento, com o tempo, sabemos lá nós quem está na porta da saída, a que túnel cavernoso vamos dar? Tememos, quase sempre, este momento como um intrépido desafio mas que resvala. O receio é o de que, mesmo quando cerramos os olhos animados por um sonho, sai-nos um robusto pesadelo que nos tolhe e nos defrauda quase sempre o esforço de dar caminho ao pensamento. Ficamos desconfortáveis e são quase sempre os barulhos da solidão que transformam o silêncio na sua trilha sonora.

Ora, se inesperadamente a dramática pandemia nos remeteu para esta forma recolhida de viver o dia a dia, é surpreendentemente oportuna esta nova relação com o tempo, com o silêncio, com a reflexão. Como diria o psiquiatra Júlio Machado Vaz, "o silêncio é uma bênção extraordinária (...) a solidão assusta." Peguemos então no silêncio para combatermos a solidão.

Ler é como diluir a solidão num aconchego de uma história. É a porta certa para uma grande caminhada, uma nave espacial que viaja sobre tempo e sobre o espaço, que transforma o silêncio numa grande viagem. Uma viagem salvadora como a do velho Wang Fô e do seu discípulo Ling. Um dos belos contos de Marguerite Youcenar. Condenado à morte pelo Imperador sob a acusação de iludir com os seus belos quadros a realidade cinzenta do mundo, foi forçado, antes da sentença, a concluir um quadro inacabado. Nele, o velho "Wang Fô começou por tingir de rosa a ponta da asa de uma nuvem pousada numa montanha. Depois acrescentou à superfície do mar algumas rugas que tornavam ainda mais profundo o sentimento da sua serenidade. O pavimento de jade tornava-se singularmente húmido, mas Wang Fô, absorto na sua pintura, não se apercebia que trabalhava sentado na água. A frágil canoa que engrossara sob as pinceladas do pintor, ocupava agora todo o primeiro plano do rolo de seda. O ruído cadenciado dos remos ergueu-se subitamente ao longe, rápido e vivo como um bater de asa. O ruído aproximou-se, encheu mansamente toda a sala, depois quedou-se". A água que enchera a sala submergindo os seus carrascos, trazia o barco pintado e ao remo o seu discípulo Ling: "Nada temas, Mestre – murmurou o discípulo. – Breve se encontrarão em seco e nem sequer se recordarão que alguma vez se lhes molhou a manga. Só o Imperador há-de guardar no coração um resto de marinha amargura. Esta gente não foi feita para se perder no interior de uma pintura. (...) - É belo o mar, e o vento é bom, as aves marinhas fazem os ninhos. Partamos, Mestre, rumo ao país para além das vagas".

Embarquemos pois no barco de Wang Fô ou na cegueira branca, que Saramago nos descreve no "Ensaio sobre a cegueira". Já que, ao contrário da escuridão da cegueira esta, epidémica, traduz-se numa luz intensa que ofusca o mundo das coisas, o mundo tangível, mas ilumina o mundo imaterial, das sensações, da reflexão. Ou, como nos mostra Albert Camus, conheçamos a cidade de Ourão que de despe perante outra epidemia, a da peste.

Humberto Costa

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