Organizadas pela Câmara desde 1965 em honra de Nossa Senhora dos Navegantes, a protetora dos pescadores, as Festas do Mar, são um dos pontos altos do Verão em Cascais. Em 2020, e agora em 2021, as Festas sofreram uma interrupção devido à pandemia de covid-19. Mas, isso não nos impede de recordar a alegria que as "Festas do Mar" representam e o significado de uma festa que homenageia as gentes do mar e que começaram por se chamar "Festa dos Pescadores".
As festas tradicionais em Cascais estão diretamente associadas a cultos religiosos, sendo de destacar as festividades relacionadas com a vivência do mar. Uma manifestação de cultura popular tradicional que dignifica a memória coletiva e enaltece a especificidade da identidade local Exemplo disso é a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes que este ano, há semelhança do ano passado, tem uma versão encurtada a realizar-se no dia 22 de agosto, pelo que não inclui o tradicional cortejo pelas ruas do centro histórico. A Procissão de Nossa Senhora dos Navegantes foi classificada, em 2015, como Património Cultural Imaterial de Cascais.
Mas recordemos como acontecia antes de a pandemia nos impedir de cumprir a tradição em pleno. Veja o documentário aqui.
Uma comunidade é tanto mais forte quanto seja capaz de preservar a memória coletiva e reforçar a sua identidade cultural. Os museus são facilitadores deste processo, porquanto conservam e sustentam as estórias que foram definindo essa identidade única e transmissível de geração em geração.
Por isso, este verão, porque não podemos cumprir a tradição das Festas do Mar, deixamos-lhe um convite: visite o Museu do Mar D. Carlos e deixe-se embalar pelas histórias dos pescadores de Cascais que estão contidas em cada um dos objetos que se encontram em exposição.
Em jeito de homenagem abrimos-lhe o apetite com algumas das histórias por detrás de alguns dos objetos em exposição na Sala dos Pescadores que tem um grande destaque neste museu:
EX-Votos Marítimos no Museu do Mar Rei D. Carlos
(Três quadros com reproduções de Ex- votos marítimos)
As embarcações eram frágeis e a vida era vivida com grande incerteza e ansiedade. Nas horas de aflição fazem-se orações, promessas à padroeira dos pescadores - Nossa Senhora dos Navegantes- e aos seus santos favoritos.
Uma forma particular de expressar a fé são os ex-votos marítimos, demonstrações de agradecimento ao poder divino por ter sido misericordioso perante uma situação de grande perigo no mar.
A sua representação é feita sob a forma de desenhos, pinturas, modelos ou esculturas, onde se relata determinado episódio vivido em circunstâncias adversas.
No caso dos quadros, cada quadro possui uma técnica própria, que varia entre o simples desenho de carvão sobre papel até à pintura sobre chapa.
A qualidade pictórica é, normalmente, muito elementar, no entanto pretende representar com fidelidade certo acontecimento, incluindo muitas vezes inscrições, como o local e data, fenómenos hidro- climáticos ou os nomes dos intervenientes.
Todos estes pequenos retábulos são, só por si, fonte inesgotável de informações e ganham por vezes caráter documental, que se projeta como importante testemunho de seu tempo. Datados, com uma rica iconografia, observando em pormenor, podemos descobrir não só conotações religiosas, mas também a realidade de um tempo e de um espaço específico.
As informações são inúmeras, desde o traje, ao tipo de embarcações, à paisagem, aos variados aspetos do quotidiano.
O Museu do Mar Rei D. Carlos possui no seu acervo 3 exemplares de ex – votos marítimos. Atualmente em exposição estão dois deles: uma réplica de Ex-voto a Nossa Senhora dos Navegantes e uma réplica de Ex-voto a Nossa Senhora de Porto Seguro. Ambas são reproduções de ex-votos existentes na Capela do Hospício de Cascais.
Como podemos observar na inscrição, o quadro dedicado a Nossa Senhora dos Navegantes trata de um agradecimento de Simão Faria a esta santa, por o ter poupado, juntamente com os seus companheiros, de uma grande tempestade junto à costa de Cascais em 1683.
O Ex-voto a Nossa Senhora do Porto Seguro é um agradecimento de José Borges e seu filho Diogo, por terem sido salvos de naufragarem no regresso da faina no mar, em 1745.
Nas reservas museológicas do Museu, encontra-se uma reprodução de um Ex-voto existente na capela do Hospício de Cascais, com a seguinte inscrição: " Ex-voto a Nossa Senhora da Nazaré, milagre a D. Fuas Roupino no logar do sítio no século XVI. Durante uma caçada ao viado que o levou para a ravina. Apareceu a virgem e salvou-se".
A existência de Ex-votos remonta pelo menos aos Fenícios e outros povos da bacia mediterrânica. É entre o século XV e o século XIX que se regista a sua maior expressão, subsistindo ainda nos dias de hoje.
Cascais, Terra de Reis e de Pescadores
A Vila de Cascais tem uma ligação ancestral com o mar, tal como as outras comunidades ribeirinhas, também esta organizou a sua própria arquitetura, entre e igreja e a margem da água, estendiam-se as casas dos pescadores, os barcos, as redes e os apetrechos de pesca num espaço partilhado.
Contudo "Cascais, Terra de Reis e de Pescadores" contrasta a sua arquitetura entre as grandes casas senhoriais e apalaçadas e as modestas habitações dos pescadores, (na época balnear, estes alugavam as suas casas aos veraneantes que vinham a banhos...);
Os elementos desta comunidade predominam de outras comunidades piscatórias do país (Figueira da Foz, Aveiro, Murtosa, Peniche, Ericeira e várias zonas do Algarve). Cascais foi a terra da oportunidade para estes homens e mulheres para a qual migraram. Uns chamavam os outros, vinham para as "Armações de Cascais"(pesca da sardinha) e daqui partiam para outros destinos, Cabo Branco, por exemplo.
Cascais, procurou sempre manter a ligação com a comunidade piscatória através da preservação das tradições e afirmação das memórias das gentes do mar e da sua cultura marítima.
Numa perspetiva de classificação do Património Cultural Imaterial, Cascais pretende valorizar, preservar e zelar pela representatividade das suas tradições, nomeadamente com a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes integrada nas Festas do Mar, e que inclui o cortejo por mar e pelas ruas do Centro Histórico da Vila.
O património das artes de pesca, a recolha de dados relativos às vivências, memórias e recordações, desta comunidade, pode ser apreciada numa das salas do Museu do Mar Rei D. Carlos.
Aqui se conta a história de Cascais, através recolha e gravação de entrevistas e histórias de vida; recolha de documentação fotográfica; Recolha de artefactos para integração do espólio e pesquisa e recolha de documentação no âmbito das literaturas orais (canções, máximas, poesias).
Superstições, maus-olhados e crenças
As mulheres buscavam a proteção divina. As superstições, os maus-olhados e as crenças, ainda hoje existem e passam de mães para filhas.
Um dos exemplos destas crenças pagãs são os adornos que muitas usam, como os brincos e o fio com pendente (exibidos no Museu do Mar). Estes exemplares, ostentam otólitos, que são concreções calcárias existentes no crânio dos peixes, concretamente no ouvido interno e vulgarmente chamados de "pedras do juízo".
Habitualmente incrustados em ouro, estes objetos são usados como adorno e como crença. A crença na proteção, no aspeto curativo e no alívio das dores. Os mais utilizados são os otólitos da corvina, porque à transparência denota-se o formato de uma santa com o manto. Existem também os da pescada, mais pequenos, com o formato de uma chave. A chave representa a chave de São Pedro, que abre as portas do céu, existindo como que uma alegria no predestino e um alívio no seu uso.
Homenagem aos pescadores das companhas do bacalhau
Iam para a pesca do bacalhau para se livrarem da tropa
As companhas roubavam os maridos às mulheres, para a pesca do bacalhau na Terra Nova e na Gronelândia. Muitos dos que vinham para embarcar para a pesca do bacalhau traziam outras intenções. "José Carlos, veio da Figueira da Foz da freguesia de Quiaios para Cascais com dezasseis anos, chamado por familiares que tinham vindo primeiro. Foi para a Escola de Pesca e embarcou primeiro para a pesca da lagosta e depois fez o que muitos faziam naquela época, para não irem ("livrarem") à tropa embarcavam para a Terra Nova. Se estivesse lá até aos vinte e sete anos ficava livre da tropa. Teve que preencher um requerimento à Marinha a pedir autorização para servir na pesca do bacalhau e assim adiou a tropa até concluir o tempo necessário. Ainda se lembra do punhado de rapazes que tal como ele faziam a inscrição no Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau, era entregue o requerimento e enviado para Alcântara para o Departamento de Marinha. Também teve que pedir por requerimento à Marinha autorização para casar, tinha vinte e dois anos. Andou no navio S. Rafael, esteve dois anos de moço; três anos de verde e depois de arrais ao todo esteve seis anos, que pareciam uma eternidade. Só queria vir para junto da mulher, parecia-lhe que nunca mais acabava. Depois sossegou e foi para mestre de pesca do arrasto".
Os homens que integravam a tripulação dos navios que partiam para as companhas vinham de todo o país, desde o Algarve ao Minho, mas em Cascais predominavam os homens da região da Murtosa, Figueira da Foz, Aveiro, Ovar e Peniche.
Portugal possui o maior mercado mundial de bacalhau salgado seco, reza a história. É um excelente exemplo, de um comércio de longa distância, uma vez que este peixe vive nas águas do Atlântico Noroeste, não habita nas nossas águas.
É um fenómeno de aculturação, está intrínseco nas nossas tradições, hábitos e costumes!